Saturday, November 29, 2008

História de uma nobre linhagem

D. António Luís Filipe Brás Telles de Ovídeo, 3º visconde de Ovídeo, comendador da extinta ordem da Cruz da Abissínia, saturado de viver na turbulenta e materialista era contemporânea, mergulha no passado, procurando descobrir nos feitos e nas personalidades de seus ascendentes uma lufada de ar fresco e revigorante para o ego.

Passando pela onda mais floreada e galvanizada dos mais recentes, entre os quais se contam dois militares de alta patente, mas de reputação duvidosa, dois prometedores cónegos cujo potencial nunca foi bem resolvido entre os ofícios burocráticos de Roma, uma revolucionária - pasme-se! - envolvida na Implantação da I República, até chegar às origens mais remotas do século XVI e ao último ascendente do qual há notícia registada sem que se entre na maré inconveniente de incógnitos e outras situações obscuras... Pois foi aí que se deparou com o insólito e a desilusão.

O último ascendente conhecido dos nobres e eruditos Telles de Ovídeo era um tal de Manel das Batatas. Nem mais. António ainda foi pesquisar se em alguma das heterogéneas e patronimicamente ricas linhagens da Lombardia, Burgúndia, ou dos Cárpatos haveria algum Batatas ou Batata e daí ter vindo a origem de tal nome. Mas, o mais parecido que surgira fora Batecca, Batta, Bitta, Batacce, Becce... mas Batatas, nada! António com sua habitual disponibilidade sempre muito diligente para assuntos histórico-culturais, procurou investigar mais acerca deste obscuro Manuel das Batatas, dirigindo-se mesmo aos confins do concelho de Lamego a fim de mais informações obter nos registos biográficos, paroquiais e mesmo na tradição oral de diversos locais.

Pois então, no último quartel de Quinhentos vivera em lugar extinto de Bailaundos, um tal de Manel das Batatas, que assim foi registado na paróquia e nas histórias antigas da terra, pois desconhecia-se sua filiação e por assinar de cruz, pois não sabia ler nem escrever, identificava-se e identificavam-no por Manel das Batatas. O nobre tubérculo fora trazido como novidade nesse mesmo século das "terras do Fim do Mundo" e tivera grande sucesso entre as populações locais, pois ajudava a matar a fome a muita gente. Não se sabendo donde lhe vinha a arte, Manel era dos mais entendidos no amanho da terra, plantação e colheita da novidade vinda das Américas. Inclusive, tendo vivido em época de ocupação filipina, o exército espanhol normalmente era abastecido pelos almocreves que das terras onde Manel era rendeiro levavam a hortaliça para a metrópole Madrid.

Em idade casadoira, já Manel das Batatas era homem próspero e casou com uma filha de um lavrador abastado, Firmina Brás de seu nome. Da prole de oito filhos, fizera questão que todos herdassem o sobrenome conquistado à custa da actividade agrícola-comercial. O único que prosseguiu o negócio do pai - tendo três dos outros morrido precocemente e os outros quatro debandado para as cidades do litoral - de seu nome João das Batatas, comprou uma pequena parcela do terreno arável, pois a restante permaneceu nas mãos do senhorio, pois a terra naquela altura era mais honra do que bem venal. Tomara-se ele de amores por uma pequena fidalga das redondezas, Mafalda Telles, e apresentou-se ao pai desta com o nome de João Brás Batatas, afirmando-se como descendente de cavaleiros nobres da parte da mãe. Não fosse o irmão do futuro sogro, Paio Telles, interceder em seu favor e teria ali levado uma carga de chibatadas que nunca mais iria repetir a veleidade e o topete de pedir a mão de uma moçoila de estatuto superior. Paio Telles, consta que era espião dos espanhóis para os quais quer Manel das Batatas quer João das mesmas enviavam muita carga de batatal por intermédio deste, e daí ficou a afeição. Firme e perseverante, João acabou por levar a sua avante, embora dissessem em surdina as gentes da vila que a menina que levou ao altar já não era donzela.
O filho varão deste casal desde cedo fazia questão de assinar com pompa e letra gótica Manuel Luiz Brás Telles de Batata, e eram conhecidos e desdenhados seus anseios de deixar as terras do Douro e partir para Lisboa para um cargo de funcionário da Coroa. Sem estudos nem grande latim, o melhor que Manuel conseguiu arranjar foi um lugar clandestino na bagageira de uma diligência do conde de Castelo Melhorado que pelo Douro foi de passagem para ver de suas terras e do negócio do vinho do Porto. Consta que o conde ia morrendo de susto quando chegado a Lisboa se deparou com aquele rapaz já com corpo de homem feito, todo preto e esfarrapado por entre as pipas que esvaziara na longa viagem, rodeado de vomitado da própria borracheira.
Em vez de o levar à polícia, o conde achou por bem dar-lhe um lugar na estrebaria de sua casa como ferrador. O amanho de Manuel nessa arte era tão ruim que o conde e família coragem não tinham de correr com ele, pois entretenimento melhor não havia em horas de fastio se não depararem-se com o desconserto dos consertos de Manuel, ou da sua prosápia de pretenso fidalgo e as façanhas grosseiramente inventadas acerca de antepassados cavaleiros.
A providência protege os tolos e, como tal, a Manuel havia de calhar na rifa de uma sobrinha-neta do conde, encalhada havia muito, devido aos seus devaneios neurasténicos e escapadelas escandalosas e descaradas com tudo quanto era empregado e servente da família. Assim, Manuel fez-se senhor de Ovídeo, pois foi esse o lugar herdado pela desposada senhora, a sul do Douro, numa das menos povoadas freguesias de Gaia. Se bem que chamar àquilo de lugar fosse de algum optimismo, tratando-se de um casebre de 100 m2 rodeado de bouça, Manuel lá foi amanhando o terreno com a ajuda de muitos dos locais que tinham naquele casal a representação ilustre de gente fina. Mais tarde fez com que dois dos seus cinco filhos fossem para Coimbra estudar leis e medicina. O mais novo, Álvaro Telles d'Ovídeo, licenciado nas ciências médicas ficou conhecido na cidade do Porto, por ter feito o primeiro parto de cesariana de que há notícia, embora de modo não apenas rudimentar como também involuntário. Álvaro tinha diagnosticado um "tumor colossal" na jovem grávida Ana Marques, e decidido a tentar a via cirúrgica para extrair aquelo imenso mal que vinha crescendo há mais de oito meses. Acabou durante esse tempo por, sem querer, encobrir da humilde família da rapariga solteira uma gravidez indesejada que a teria lançado nas ruas da amargura. Qual não foi o espanto de todos quando ao erguer o terrível tumor surge o rebentozinho e respectivos berros de nascituro! Pena que a jovem mãe não ter também sobrevivido a um evento marcante da história médica do país...
De mais ascendentes dos Telles d'Ovídeo não há mais grande coisa a salientar, a não ser uma revolucionária feminista que viveu entre 1880 e 1939, Maria Rosália, que teve papel preponderante no movimento feminista, embora dela não tenha restado material escrito como registo de sua autoria. Dela apenas se sabe da sua liderança em actos de queima de sutiãs, entre os quais uma vez ia resultando um incêndio colossal nas traseiras de um prédio velho da Rua do Ouro. Dela fez queixa inúmeras vezes um comerciante de chapéus e acessórios de moda que vivia na casa ao lado, acusando-a de tentativa de fogo posto inclusive no interior de seu estabelecimento sempre que Rosália e suas compinchas da "causa" viam um acessório feminino que não caísse de feição ao "progresso social" e à "emancipação da mulher". Acabou por morrer num incêndio em sua casa, provocado por um charuto mal apagado, sendo a imagem de marca de Rosália, a constante companhia desses fumantes que mal cabiam em seus finos dedos.

Pode-se também referir o talento musical de Sebastião Telles d'Ovídeo, sobrinho de Rosália, barítono de grande dotes líricos, mas pouco dado ao conhecimento das actualidades do seu tempo. Numa visita a França logo após a guerra em 1946, Sebastião num recital teve de se esgueirar pelas traseiros escapando a um possível linchamento, pois acidentalmente interpretou uma cançoneta lírica em homenagem a Vichy, cuja folha de partitura ninguém sabe como foi ali parar. Como se não bastasse o pasmo durante a interpretação, Sebastião na sua inocência ainda veio dar vivas no fim ao "president de la République"...

Quando perguntam a António Luís como correram seus trabalhos de investigação, António com sua fleuma refere que tal "ainda havia de dar muita lavoura..."

Os dados narrados neste história são completamente inventados, embora não nos admirasse que houvesse meras coincidências com a realidade.

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